7 dias de silêncio e de aprendizado

How Education
6 min readMar 11, 2019

--

Começou de maneira despretensiosa: uma consulta no Google. O ano de 2018 havia sugado todas as minhas energias e eu precisava ir para uma caverna no meio do mato para soltar meu primal scream.

Fiquei entre 6 opções, mas, a que mais chamou a atenção foi a de um retiro de sete dias, num templo budista. Ah, era um retiro de silêncio, também.

É isso!, pensei com meus botões. Depósito feito, só depois tive a curiosidade de saber onde estava me metendo. Na minha cabeça, eu iria dormir bastante, comer comida leve (fazer um detox) e ler muito em uma fazenda maneira, com um cara vestido de monge, umas vaquinhas que produziam queijo fresco, cachorros que corriam atrás do próprio rabo e um monte de gente que, como eu, estava louca para deixar pra trás o estresse do ano anterior. Fácil, não é mesmo? Essa era a minha ficção.

E a realidade?

A realidade foi dura comigo :-( . No segundo dia, já estava ficando louco por não poder falar com ninguém, com o SAMU (já falo sobre isso), em ter que acordar às 5h20 da manhã, com a programação diária que mal permitia um banho demorado e com a ideia de ir dormir às 21h45. Você pode estar pensando que eu devia ter ido para a praia com meus amigos (confesso: também pensei isso). Mas, calma, deixa eu falar dos aprendizados.

Nota da redação: qualquer semelhança com o livro “O monge e o executivo” é mera coincidência (aliás, em minha consulta rápida aqui na How, ninguém leu o livro).

Passado o susto do segundo dia, as coisas começaram a fazer sentido e eu comecei a fazer as associações com o mundo do trabalho e das startups.

Liderança

Monge Enjo é uma pessoa como eu e você — casado, dirige uma camionete velha, almoça e janta (suponho que vá ao banheiro e que tome banho) -, mas é um líder. E quando eu falo de liderança, não estou falando daquele tipo de liderança que é imposta pelo cargo que a pessoa exerce, mas da liderança genuína, que funciona por atração e que acontece porque essas pessoas compartilham seus ideais, objetivos e propósitos, pelo desejo de mudança ou de inconformidade com o status quo ou pelo simples fato de dizer uma coisa e praticar o que é dito, como forma de validar suas palavras (quando acordávamos, às 5h20, ele já estava de pé, quando íamos cuidar do imenso jardim, ele era o primeiro a pegar o rastelo e quando íamos fazer as refeições, ele também aguardava enquanto todos se serviam).

Cerimônia

O que os budistas chamam de cerimônia eu classifico como processos. Nos primeiros dias você acredita que as coisas nunca poderão acontecer de maneira sincronizada, mas, no terceiro dia a engrenagem já está rodando sozinha, como se as pessoas — mesmo sem falar — se conhecessem há tempos. É um choque de realidade, conduzido de maneira séria, mas, com muita ternura e com o interesse em ensinar e ajudar quem está deslocado ou que ainda não entendeu como as coisas funcionam.

As refeições por exemplo, seguem um ritual: são precedidas de mantras em agradecimento e respeito ao próprio alimento que será servido. Antes de iniciar, cada pessoa deve oferecer um pouco do que colocou em suas tigelas. Só se come após todas as pessoas se servirem. Não se desperdiça alimento, em hipótese alguma.

Foco

Como um dos fundamentos do budismo é atingir o vazio ou a vacuidade, somos orientados a viver o que estamos fazendo no momento e nada mais que isso. Podemos associar isso com metodologias simples e comuns como a técnica pomodoro, mas, na verdade, é muito mais profundo. Uma das práticas mais comuns para manter o foco é a meditação. O zazen, técnica de meditação praticada no local, é um exemplo de atividade que exige foco total: no retiro, são 4 horas de meditação diárias. As meditações exigem muito do físico (costas, coluna, pés, ombros, pernas e joelhos), porque durante o período de meia-hora ininterrupta, você assume uma posição e fica nela, sem se mover. Também exigem muito da mente: se não consegue esvaziar a sua mente e se os pensamentos voltam com frequência, uma das técnicas é contar de um a dez, mantendo a mesma frequência da inspiração e expiração.

Você não pode fazer isso sozinho

As atividades são feitas em conjunto e só são iniciadas depois que todos os participantes estão prontos. As pessoas só começam a comer, por exemplo, depois que todas as demais — eram 31 no retiro — já se serviram. Para repetir o prato, deve-se aguardar que a última pessoa termine sua refeição e que todos se sirvam novamente. Outra atividades, como o SAMU, também seguem o mesmo princípio: todos colaboram, retirando as folhas secas do chão ou fazendo a limpeza das salas onde são realizadas as meditações e os cultos religiosos. O SAMU é um convite ao exercício da humildade, porque você faz coisas que não faria no seu dia a dia. O que chama a atenção é que, mesmo que as pessoas não estejam conversando, existe uma sintonia tão grande que o ato de falar se torna dispensável. Cada um sabe o que vai fazer e todos estão dispostos a ajudar. O respeito ao próximo é o ponto alto dessas atividades.

Em uma das raras pausas que eu tive durante o retiro, li o depoimento de um budista que dizia que uma das essências da filosofia é a rede de conexões estabelecidas entre as pessoas. Pura verdade. Nunca fui tão bem recebido por um grupo de pessoas desconhecidas.

Prática

Entre os ensinamentos do zazen, o monge sempre destacava a necessidade da prática. Para os adeptos do zazen, a teoria, sem a prática, é vazia. A teoria deve ser utilizada como um meio (um guia) e não como um fim em si mesma. A programação do retiro enfatiza que a prática deve ser constante porque ela fortalece o que está sendo feito/proposto. A prática exige um ritual e eles são repetidos à exaustão. Essa repetição é fundamental para a melhora do desempenho e dos resultados que se quer atingir.

Testando os limites

Quem entra nessa, tem que seguir uma programação que testa os limites, mas existe um objetivo e um propósito claro: o primeiro é tirar a pessoa daquele mundo que conhece e o outro é aprender algo novo e transformador. Veja a programação do retiro: acordar às 5h20, meditar por uma hora, ritual religioso, café da manhã, SAMU, meditação, almoço, SAMU — novamente -, yoga, refeição, meditação e dormir. Alguma relação com os ambientes das startups?

Boca fechada

E como foi ficar calado? No fim do segundo dia eu achei que fosse surtar, mas, depois eu comecei a identificar que meus outros sentidos — como a audição e a visão periférica, por exemplo, estavam mais aguçadas, e isso faz muita diferença para aumentar sua percepção de tudo o que acontece perto de você. O silêncio está diretamente relacionado ao foco e à compreensão dos momentos que você vive, e, por incrível que pareça, não prejudica a comunicação e a relação entre as pessoas — em alguns casos, até auxilia.

Trecho do meu diário de retiro

A noite ainda está quente, embora tenha refrescado um pouco. Foi ela — a noite — que me ofereceu alguns dos momentos mais marcantes desse retiro: o céu cheio de estrelas. Estava lindo. O outro momento foi o gato brincando com um besouro na sala de refeições. Coisas simples. Os aviões cruzam o céu. Primeiro eu ouço o som, depois vejo os aviões e suas luzes, em diversas direções.

--

--

How Education
How Education

Written by How Education

Bootcamps imersivos, práticos e de curta duração com facilitadores das principais startups do mundo.

No responses yet